Aquecimento extremo, tempestades violentas. A cidade do Rio de Janeiro encara sua nova realidade climática. Estamos preparados?
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A julgar pelos últimos verões, os cariocas já podem se preparar para o pior. Em 17 de março de 2024, o bairro de Guaratiba, na Zona Oeste, registrou a mais alta sensação térmica dos últimos dez anos: 62,3 oC, segundo dados do Sistema Alerta Rio, da prefeitura do Rio de Janeiro. Em 20 de fevereiro de 2025, o termômetro em Guaratiba bateu 44ºC, a mais alta temperatura para a cidade na série histórica, iniciada em 2014.
O de 2024 foi também o verão mais chuvoso da capital fluminense desde que começaram as medições, em 1997. Em janeiro, a média pluviométrica alcançou 349 milímetros, superando a marca anterior, de 2013 (347 milímetros), e ultrapassando em quase 200 milímetros a média histórica do mês (161 milímetros).
Ou seja, a intensidade das chuvas e o calor dos dias vêm aumentando progressivamente nos últimos anos no Rio de Janeiro – duas manifestações das mudanças climáticas globais com alto potencial de desastre. Haja vista o que ocorreu entre o final de abril e o início de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, quando as chuvas causaram inundações que afetaram 2,4 milhões de pessoas, com 183 mortes confirmadas.
Mas o Rio não é Porto Alegre: o Rio tem morros. São três maciços aos pés dos quais a cidade se espalha – Tijuca, Pedra Branca e Gericinó-Mendanha – e cujas encostas por vezes chega a escalar, multiplicando-se em milhares de moradias precariamente instaladas que desafiam os temporais.
Um índice inédito desenvolvido pela Ambiental em parceria com o grupo de pesquisa RioNowcast+Green, do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense, revela que o município do Rio de Janeiro tem pelo menos 599 mil domicílios particulares, 21% do total, em regiões de alta vulnerabilidade a chuvas extremas. Desses, 142 mil estão em áreas de vulnerabilidade muito alta, que combinam alta suscetibilidade a inundações ou escorregamentos com alta vulnerabilidade socioeconômica.
A receita para o desastre se confirma pelo fato de que não apenas as chuvas estão mais intensas como também mais mal distribuídas ao longo do ano: chuvas mais curtas e mais torrenciais, entremeadas por muitos dias secos. Segundo o urbanista climático Pedro Henrique de Cristo, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Harvard (EUA), “é o pior cenário possível, principalmente para deslizamento, porque o solo, quando não chove muito, fica compacto e seco; e, quando dá um pancadão de chuva, leva o terreno embora, como um bolo que esfarela”. Para desastres relacionados a deslizamentos, são 70 mil moradias em alta vulnerabilidade, das quais 10 mil em muito alta.
Quando não é a massa que esfarela, é a calda desse bolo que escorre na forma de água e vai se depositar no fundo do prato, ou seja, nas baixadas que se espraiam no sopé desses maciços. São 530 mil domicílios em alta vulnerabilidade a inundações e 132 mil em muito alta. O índice leva em conta indicadores socioeconômicos e de risco geológico e, em sua versão atual (que será ampliada e atualizada em etapas futuras), não contempla os dados de temperatura e calor extremos.
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O mapa de vulnerabilidade a chuvas extremas desenvolvido pela Ambiental indica que uma das áreas mais sujeitas a inundações no município do Rio de Janeiro é a do chamado Complexo Lagunar de Jacarepaguá, um conjunto formado pelas lagoas de Jacarepaguá, Tijuca e Marapendi, situado entre dois maciços, o da Tijuca e da Pedra Branca, na Zona Oeste da cidade. Não por acaso, é a região que mais cresceu no Rio nos últimos 50 anos, tornando-se o subdistrito mais populoso do município, com 653 mil habitantes.
Se não houvesse a cidade, a água das chuvas que não infiltrasse o solo escorreria pelos morros, seria absorvida pelas lagoas e seus manguezais adjacentes e então fluiria para o mar por meio de rios e canais. O que ocorre, porém, é que essa água encontra o asfalto ou o leito assoreado das lagoas, além de diversos rios canalizados – nesse solo impermeabilizado, a água não tem como infiltrar e acaba alagando tudo o que encontra pela frente, sobretudo ruas e casas.
“Quando se canaliza um rio e se ocupa suas margens, especialmente as planícies de inundação, com a urbanização e a impermeabilização do solo, o rio perde esses espaços de liberdade. Com suas margens impermeabilizadas, a água não consegue infiltrar no solo, resultando em extravasamento e inundações nas áreas ao redor”, explica Adão Cândido, pesquisador do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que estudou o processo de urbanização de Jacarepaguá.
No caso da baixada de Jacarepaguá, o que houve foi uma ação contínua e sistemática de drenagem, canalização e aterramento dos principais corpos d’água e áreas de restinga para dar vazão à expansão imobiliária que deu origem a bairros como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Bairros esses que, convém lembrar, foram construídos por uma massa de trabalhadores que acabaram ocupando o entorno dessas áreas, prensados entre os morros e os edifícios de classes média e alta.
Um lugar que surgiu desse processo foi Rio das Pedras, atualmente a segunda maior favela do Rio de Janeiro em número de domicílios, na região de Jacarepaguá. Dados do Censo de 2022 indicam 55.653 moradores na favela, mas organizações locais estimam 130 mil habitantes. Como é de praxe nas favelas cariocas, o crescimento desordenado ao longo dos anos resultou em infraestrutura precária e desafios sociais. Na parte baixa de Rio das Pedras, 5 mil domicílios (16%) estão em áreas de alta vulnerabilidade para inundações e 2 mil em muito alta. Na parte alta, na encosta do morro do Pinheiro, 302 casas estão em área de alta vulnerabilidade a deslizamentos.
Elizabeth Bezerra, ambientalista e moradora há 32 anos da região das Vargens, uma área periférica da baixada de Jacarepaguá, gosta de chamar isso de “gentrificação climática”. “O Estado empurra o morador para sair da sua habitação sem dar a ele nenhuma condição de recomeço. E onde ele vai recomeçar? A lei diz que, se você vai remover uma comunidade, ela precisa ser alocada próxima do seu local histórico, onde tem a escola, o hospital, o médico, toda essa questão social. Mas não é isso que acontece. Para onde vão, se tudo está sendo entregue à especulação imobiliária selvagem?”
O relato de Elizabeth revela que essa estratégia de empurrar comunidades mais pobres para áreas cada vez mais periféricas é um processo contínuo, ainda em andamento conforme os bairros mais ricos se expandem. A questão é que, na baixada de Jacarepaguá, espremida entre dois maciços montanhosos, a população menos favorecida não tem para onde ir a não ser subir as encostas. Adicione um solo incapaz de absorver a água que escorre dos morros e está lançado o cenário para o desastre.
E o desastre envolve mais do que uma casa com água batendo nas paredes. Além das evidentes e incalculáveis perdas materiais que um alagamento ou um deslizamento causam, há impactos menos perceptíveis, como no abastecimento de água e na saúde pública. Se por um lado falta água potável nessas situações, por outro, sobra água contaminada, o que favorece a disseminação de doenças gastrointestinais, respiratórias, dermatológicas e infecciosas. Tudo piora, é claro, conforme as condições sanitárias, ainda mais levando em conta que muitas comunidades não têm acesso a saneamento básico.
Somando todas as pessoas afetadas de uma forma ou de outra pelas tragédias climáticas – alagamentos, ciclones, deslizamentos, enxurradas, frente frias, inundações e tempestade –, não é pouca gente: em todo o estado do Rio de Janeiro, em torno de 3 milhões de pessoas sofreram algum tipo de impacto entre 2020 e 2023, segundo a Casa Fluminense, uma ONG que promove justiça ambiental. Entre elas incluem-se 140 mortes, 1.942 enfermos, 8.813 desabrigados, 145.077 desalojados e 229 desaparecidos. Em relação às perdas materiais, 94.919 unidades habitacionais foram danificadas e outras 887 destruídas, com um prejuízo estimado em R$ 1,1 bilhão.
Para evitar, ou ao menos minimizar, os riscos de deslizamento causados pelas chuvas extremas no Rio de Janeiro, a prefeitura implantou em 2011 o programa Sirenes Cariocas, um sistema de alertas que soam sempre que os índices pluviométricos acusam a necessidade de uma desocupação preventiva. O programa surgiu como resposta às chuvas de 2010, que deixaram 230 mortos no estado e 35 no município.
Na época foram instaladas 168 sirenes em cerca de cem comunidades vulneráveis a deslizamentos. Dessas, 164 ainda continuam em atividade. Ou seja, não apenas quatro sirenes deixaram de funcionar como nenhuma outra foi instalada nos últimos anos – a última é de 2012.
A maioria dessas sirenes está localizada nas zonas Norte e Sul, todas em torno do maciço da Tijuca. As casas construídas nas encostas dos maciços de Gericinó-Mendanha e da Pedra Branca, na Zona Oeste da cidade, até hoje não foram contempladas por estudos geológicos-geotécnicos, um mapeamento fundamental para identificar as áreas que estariam sujeitas a impactos no caso de chuvas extremas.
O relatório elaborado pelo Tribunal de Contas do Município TCM-RJ aponta que o programa Sirenes Cariocas cobre apenas um terço das áreas de risco climático na cidade. Cerca de 400 comunidades ficaram de fora, a maioria precisamente no entorno do maciço da Pedra Branca.
Vale lembrar que o maciço da Pedra Branca é um colosso de pedra que abriga a maior floresta urbana do mundo, protegida por um parque estadual com 125 km2 de extensão e cercada por encostas que fazem sombra a 19 bairros cariocas, como Curicica, Camorim, Bangu, Campo Grande, Guaratiba e as Vargens Grande e Pequena. O mapa da Casa Fluminense indica pelo menos 200 domicílios no entorno do Parque Estadual da Pedra Branca em áreas de alto risco de deslizamento.
“A sirene é de suma importância”, diz Adilson Batista Almeida, um dos líderes do quilombo do Camorim, situado no flanco sul da Pedra Branca. “A comunidade do Alto Camorim possui casas em áreas de encosta e, embora não tenham ocorrido deslizamentos até agora, é crucial instalar sirenes para preparar a população para emergências.”
Além das sirenes, os cariocas podem se informar sobre a ameaça de chuvas extremas por meio do aplicativo Alerta Rio, desenvolvido pela Prefeitura, que mostra dados em tempo real sobre as condições meteorológicas e avisa quando há possibilidade de deslizamentos, com informações georreferenciadas. O sistema também envia alertas por SMS, mas é preciso cadastrar o CEP de interesse no número 40199.
Outra fonte de informação é o Painel de Alertas do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que também publica boletins diários focados na prevenção dos riscos de inundações e deslizamentos. Isso é possível graças a uma extensa rede de pluviômetros, radares, estações hidrológicas e, sobretudo, à sala de situação que o Cemaden mantém em São José dos Campos (SP), onde especialistas acompanham sete dias por semana, 24 horas por dia, os municípios brasileiros com maior risco de desastre natural.
“As sirenes funcionam como importante ferramenta para minimizar o impacto de chuvas fortes em comunidades com alto risco de deslizamentos”, diz Tharcisio Cotta Fontainha, professor-adjunto de Engenharia de Produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e líder do Centro de Estudos e Pesquisas de Engenharia em Desastres. “Por outro lado, ter sirenes por si só não é suficiente; é importante avançar com outros mecanismos para aumentar a aderência da população.”
A fala de Cotta ecoa aquilo que foi estabelecido em 2015 pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres, durante sua conferência mundial realizada em Sendai, no Japão: a necessidade de “desenvolver campanhas globais e regionais eficazes como instrumentos para a sensibilização e educação da sociedade (...), a fim de promover uma cultura de prevenção de desastres, resiliência e cidadania responsável”.
O Marco de Sendai é um chamado à ação para que os órgãos competentes comecem a incluir a sociedade civil no combate aos impactos do clima extremo. Em outras palavras, envolver os moradores das áreas de risco em treinamentos de primeiros socorros e simulações de desocupação para entenderem como agir em caso de chuva forte.
Mas essas, é claro, são apenas medidas mitigadoras. Os especialistas são unânimes em dizer que tudo começa na forma como a própria cidade se assenta sobre as áreas de risco. E essa responsabilidade é do governo.
O geógrafo Adão Cândido, da UFRJ, sugere medidas como a dragagem dos rios – retirada de sedimentos do leito para que possa comportar mais água –, coleta eficiente de lixo e mapeamento das áreas de risco. Mas alerta que, em áreas de baixada, as inundações serão inevitáveis e as ações do poder público, paliativas.
“O processo de implementação na favela é caro e demorado”, argumenta. “A curto prazo, essas melhorias são improváveis, mas, a longo prazo, ações como saneamento básico, construção de habitação popular, melhoria da qualidade de vida e criação de parques fluviais e áreas verdes podem trazer benefícios significativos.”
O urbanista climático Pedro Henrique de Cristo fala em “redesenho do terreno”: “O que a gente precisa fazer é identificar que áreas da cidade sofrem mais com os alagamentos, fazer uma análise com os modelos 4D e aí pensar um redesenho do terreno no território da cidade – com parques alagáveis de larga escala, canais, diques, áreas de turfa para encharcamento do solo.
Na prática, trata-se de repensar a lógica de ocupação do espaço urbano no meio natural. Como a Holanda vem fazendo há mais de cem anos para não submergir, por meio de diques, e como a China e suas cidades-esponja, onde o concreto do solo é substituído por material permeável, entremeado por áreas verdes que possam conter o excesso de água, como parques alagáveis e jardins de chuva. Já são 16 as cidades chinesas adaptadas para se transformar em esponjas urbanas.
Para Pedro Henrique de Cristo, “não podemos enfrentar os desafios climáticos do século 21 com as infraestruturas e o urbanismo do século 20. Temos que fazer uma grande reforma urbana, recuperar o solo, destruir o concreto e o asfalto para ter parques alagáveis, jardins de chuva, canais, entre outras estruturas que usam a natureza como elemento construtivo”.
Em relação a isso, Elizabeth Bezerra, a ambientalista da região das Vargens, é um tanto cética, lembrando que “a maior catástrofe ambiental do Brasil foi no estado do Rio de Janeiro”. Ela se refere ao dia 11 de janeiro de 2011, quando chuvas intensas causaram deslizamentos na região serrana que mataram mais de 900 pessoas e deixaram outras 35 mil desabrigadas. “O que se aprendeu? Nada. Tanto que depois veio Petrópolis [em 2022], com mais de 200 mortos. Isso mostra que nós, enquanto estado e município, não aprendemos com o que acontece conosco.”
E sentencia: “Ou construímos uma cidade pensando juntos, ou teremos que arcar com as consequências dessas sementes que hoje são lançadas aos montes em toda a cidade do Rio de Janeiro”.
Fernanda Vasconcellos, professora e pesquisadora do Departamento de Meteorologia da UFRJ, detalha os impactos das mudanças climáticas, principalmente no Rio de Janeiro.
Informações exclusivas obtidas pela Ambiental por meio da Lei de Acesso à Informação apontam que, no Rio de Janeiro, há menos sirenes em operação hoje do que em 2011, quando o sistema foi instalado.
O que as comunidades e, principalmente, o poder público precisam fazer para preparar as cidades para uma realidade na qual os eventos de chuva extrema são cada vez mais intensos efrequentes?